Salvo as TVs e rádios especializados em comercializar Jesus no mercado dos pobres de espírito (eles são muitos, infelizmente), automaticamente alinhados com Bolsonaro, os jornais de maior respeitabilidade burguesa mantêm um pé atrás em relação ao Messias das milícias.
Ele foi a solução possível para completar a operação golpista iniciada em 2016 com a destituição de Dilma Rousseff pelo Congresso. Mas os disparates e desatinos ideológicos do clã presidencial, suas obscuras relações com o submundo do crime, a avalanche de insultos do mais baixo calão que invariavelmente acompanham os tenebrosos pronunciamentos do astrólogo do Mito, tudo isso incomoda os meios minimamente civilizados da classe dominante. Não convém, porém, exagerar esse incômodo. Se o atual governo conseguir levar adiante o programa antissocial assumido por Temer, operando o colossal confisco dos rendimentos dos pobres implícito na “reforma” da Previdência, poderá contar com a “compreensão” dos interesses dominantes.
A Rede Globo, cuja agenda política só coincide parcialmente com a de Bolsonaro, tem calibrado com precisão profissional a tática do apoio com pé atrás. Um exemplo: na manifestação pró Bolsonaro de 26 de maio passado, ela recorreu ao velho expediente de “editar” os fatos, deixando de lado os cartazes mais boçais e as vociferações golpistas dos bandos neofascistas, para pôr na tela as que apoiavam o esquartejamento da Previdência.
O bolsonarismo trouxe muitos males inéditos, mas em relação ao enorme mal anunciado para o sistema previdenciário nacional, ele apenas dá sequência a uma velha e tenaz aspiração dos círculos mais gananciosamente antissociais da burguesia. Basta ler, por exemplo, o artigo intitulado “Empresários querem Previdência privatizada”:
“De olho na reforma da Previdência Social […] um grupo de banqueiros e empresários levou ao presidente eleito […] uma proposta que muda radicalmente o sistema de aposentadorias no País. A sugestão é a de trazer para o Brasil o modelo adotado no Chile, onde as aposentadorias são totalmente geridas por seguradoras privadas”. Essa “ideia de privatizar completamente a Previdência” (em síntese: de pinochetá-la) “é sustentada por um grupo de instituições financeiras lideradas pelo banco Icatu […]”. O articulista comenta que esse “lobby” “se explica pelo valor das cifras envolvidas”; “o negócio pode render milhões às instituições financeiras”. O nome técnico dessa rapina proposta pelos milionários da finança é “regime de capitalização”.
O artigo poderia ter sido publicado ontem, mas saiu no jornal O Estado de São Paulo de 27 de novembro de 1994. O “presidente eleito” a que o articulista se refere é F. H. Cardoso. Sensível aos custos orçamentário e social do mega golpe da capitalização, ele não a adotou. Adotá-la implicaria em transferir para os bancos privados as contribuições dos trabalhadores, deixando ao Estado a responsabilidade de pagar as aposentadorias e pensões em vigor e de garantir os direitos daqueles que, na ativa, estavam contribuindo para o INSS. Os bancos queriam que o governo lhes pagasse bônus relativos ao prazo em que os trabalhadores não tivessem contribuído para a “capitalização”. Há um quarto de século, quando o artigo foi publicado, calculava-se que o custo desses bônus atingiria 300 bilhões de reais em 20 anos.
Sempre à espreita de um bom botim, os financistas aplaudiram a vaga ultrarreacionária do bolsonarismo que permitiu ao empedernido “chicago boy” Paulo Guedes ressuscitar a “capitalização”. Há uma razoável possibilidade de que esse projeto perverso da extrema direita seja barrado no Congresso, de modo a preservar algo do caráter solidário e da universalidade de direitos que a Constituição de 1988 pretende assegurar ao povo brasileiro.
* Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.