Caso “paraíba”: veja por que o preconceito de Bolsonaro pode ser crime

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Ao se referir a nordestinos como “paraíbas”, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) adotou uma postura preconceituosa e passível de punição pela lei. É o que apontam linguistas e advogados ouvidos pelo jornal Folha de S. Paulo. A origem do termo está intrinsecamente relacionada à intensificação dos fluxos migratórios de nordestinos para o Sudeste a partir dos anos 1960, especialmente de baianos a São Paulo e paraibanos ao Rio de Janeiro.
Bolsonaro usou o termo “paraíba” para se referir a governadores do Nordeste

“Criou-se essa designação genérica de ‘baiano’ em São Paulo e ‘paraíba’ no Rio por conta da tensão”, afirma Dante Lucchesi, professor de letras na UFF (Universidade Federal Fluminense) e referência na área de sociolinguística. “Era uma população mais pobre, marginalizada na periferia dessas cidades, já que os nordestinos que migravam eram retirantes, pessoas de baixa escolaridade e se ocupavam com trabalhos menos qualificados.”

Na última sexta-feira (19), em uma conversa com o ministro Onyx Lorenzoni (RS) captada por um microfone aberto antes de um café da manhã com jornalistas, Bolsonaro usou o termo para se referir a governadores do Nordeste. “Daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão [Flávio Dino, do PCdoB]. Tem que ter nada com esse cara”, disse.

No dia seguinte, o presidente negou que tenha usado a expressão de forma pejorativa e afirmou que se referia aos governadores do Maranhão e também da Paraíba (João Azevedo, do PSB). Nesta terça (23), em Vitória da Conquista (BA), dissimulou ao dizer que “somos todos paraíbas, somos todos baianos”.

Segundo Lucchesi, “o termo ‘paraíba’ é carregado de preconceito no Rio de Janeiro”, onde Bolsonaro (que é paulista) se radicou. “Nesse caso, é claramente um termo pejorativo que reflete uma postura preconceituosa, lamentavelmente por parte do presidente, que devia representar todos os brasileiros.”

O influxo crescente de migrantes nordestinos na segunda metade do século 20 – quando se operou um maciço êxodo rural e a população brasileira passou a ser majoritariamente urbana – gerou a tensão de que fala Lucchesi. “A tensão gera preconceito, e ele se traduz na terminologia.” De acordo com dados do IBGE, em 2015 havia mais de 2 milhões de baianos morando no estado de São Paulo (5% da população) e 330 mil paraibanos no do Rio de Janeiro (2% da população).

“Baiano” e “paraíba” passaram, então, a ter denotação (num nível mais objetivo) de nordestino em geral – e uma conotação (analisando-se o contexto) negativa, de pessoa ignorante, desqualificada, afirma o especialista. “Já tive notícia até do termo ‘baianada’ em São Paulo, como alguma irregularidade, uma atitude condenável”, diz.

“O uso pejorativo está claramente vinculado à migração dos nordestinos para o Sudeste”, afirma o linguista Carlos Alberto Faraco, professor de letras da UFPR (Universidade Federal do Paraná). “Eram pobres e ficou aquela pecha de recusa a esse tipo de migrante.”

Crime de injúria

De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, o uso palavra “paraíba” pode configurar crime, caso ocorra em um contexto que busque ofender. Thiago Amparo, professor da Escola de Direito da FGV-SP, afirma que é preciso avaliar a situação em que o termo foi usado e o intuito com que foi empregado.

“Você tem olhar o fato e as circunstâncias do caso concreto para verificar se a pessoa efetivamente imprimiu aquela fala com o intuito de exprimir aquele preconceito ou ofender a honra da pessoa. Numa situação concreta, você olha todo o contexto, o vídeo que a pessoa falou, quem é o interlocutor, analisa os elementos da situação”, diz.

É o que também diz João Daniel Rassi, sócio do escritório SiqueiraCastro e especialista em direito penal. “Pode parecer que a pessoa mostrou um fato, mas no contexto da frase seja ofensivo. É um crime que depende de interpretação”, pontua.

Pela lei brasileira, situações de preconceito podem ser enquadradas como injúria, quando a ofensa é feita a uma determinada pessoa. O crime, previsto no Código Penal, tem pena maior quando a ofensa faz referência à “raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

A punição prevista é de multa e até três anos de reclusão. Outra possibilidade é quando o ato se encaixa na lei 7.716, que dispõe sobre os crimes de discriminação. Ela também é conhecida como Lei do Racismo. Essa legislação pune situações em que uma pessoa é impedida de realizar alguma atividade, frequentar um estabelecimento ou exercer um cargo por preconceito.

O artigo 20, contudo, amplia a abrangência da lei. O dispositivo pune, com multa e até três anos de reclusão, quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Se o crime for cometido por qualquer meio de comunicação ou publicação, o que inclui redes sociais, o tempo de reclusão pode chegar a cinco anos.

“É um artigo genérico que normalmente você enquadra condutas que são não só contra uma pessoa específica como contra uma coletividade. Quando a pessoa pratica, induz ou incita uma discriminação ou preconceito com base na questão nordestina contra um grupo, há casos que estaria praticando o crime do artigo 20, que é mais geral”, diz Amparo, da FGV.

Rassi e Amparo afirmam que, embora a lei fale em “procedência nacional”, já há o entendimento no meio jurídico de que ela pode ser aplicada também em casos de preconceito regional, como discriminação a nordestinos. Os dois também concordam que o fato de a ofensa ser proferida em uma conversa privada, como ocorreu no caso de Bolsonaro, não impossibilita a punição. “Isso não tira o caráter ilícito da fala se for provado que a intenção dele era ofender um grupo”, disse Amparo.

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